Catarina Kasten vivia em um pedaço de paraíso a cerca de 25 quilômetros do Centro de Florianópolis. Em uma casa de madeira de frente para o mar, na Praia do Matadeiro, ela e o marido, Roger Gusmão, dividiam a vida entre sonhos e rotina. Catarina cursava mestrado, dava aulas particulares de inglês, fazia natação no mar aberto e tocava flauta. Eram muitos os planos: a nova casa na Praia dos Açores, as viagens pelo mundo, o doutorado no exterior.
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Esse paraíso de sonhos e possibilidades foi manchado para sempre há exatos sete dias. Na última sexta-feira (21), a jovem saiu de casa para ir a uma aula de natação, como fazia duas vezes por semana, às 7h, na Praia da Armação, quando foi surpreendida por um desconhecido na pequena trilha que liga as duas praias. Catarina foi estuprada e assassinada. O corpo dela foi encontrado no mesmo dia, em uma área de mata perto da trilha. O suspeito confessou o crime e foi preso.
A trilha em que Catarina morreu é mais do que um percurso de aventura, como as trilhas da Lagoinha do Leste e do Gravatá, famosas em Florianópolis. Trata-se da única via de acesso para a comunidade do Matadeiro.
A localidade, escondida entre morros e a praia, tem cerca de 150 casas, segundo a Associação de Moradores e Amigos da Praia do Matadeiro. É por essa trilha que dura mais ou menos 10 minutos que a vida flui: as crianças vão à escola, as compras são carregadas, as mudanças são feitas e os vizinhos chegam ao trabalho. Tudo precisa passar por ali.
Cinco dias após o crime, porém, o caminho ganhou novo significado. Flores e cartazes com dizeres como “Catarina presente” e “Liberdade para ir e voltar” transformaram a trilha em espaço de protesto e homenagem.
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— A nossa praia sempre foi muito tranquila, muito linda, um paraíso. E hoje eu já não consigo ver mais nada disso. Vai ser difícil retomar a beleza — conta Bia Cappello, moradora do Matadeiro e ex-colega de natação de Catarina.
Veja imagens da trilha
Dor e luta seguem a tragédia
Em dias de maré baixa, os moradores do Matadeiro conseguem ir pela praia, sem passar pela trilha. Mas no dia em que Catarina morreu, a maré estava alta. Imagens de uma câmera de segurança obtidas pela Polícia Militar mostram a jovem indo em direção à trilha às 6h52min. Segundos depois, o suspeito aparece correndo na mesma direção.
A bolsa de natação de Catarina foi encontrada em frente a uma casa no início da trilha. O corpo foi achado horas depois, por dois transeuntes, em uma clareira na mata. A policial militar Luiza Rossi, que se criou no Matadeiro, foi uma das primeiras a chegar ao local.
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— Eu conhecia a Catarina de vista. Claro, a gente se choca, impressiona, fica triste. Mas me mantive firme e fiz o que precisava ser feito, até porque a nossa intenção era encontrar o autor do crime o mais rápido possível — diz Luiza, que era a única mulher entre os policiais naquela ocasião.
As buscas começaram logo depois. Com as imagens fornecidas pela associação de moradores, vizinhos reconheceram o assassino — um morador da Armação, de 21 anos.
— No primeiro momento em que chegamos à casa, ele confessou o crime. Disse que tinha estado em um “rolê” aqui na Armação e que, quando terminou, foi para o Matadeiro. E que, quando passou pela Catarina, as “vozes da cabeça dele” mandaram ele fazer o que fez — recorda a policial.
O suspeito foi preso em flagrante e levado à Polícia Civil, onde novamente confessou. O caso é investigado pela Delegacia de Homicídios e segue para a 36ª Promotoria de Justiça da Capital, com atuação no Tribunal do Júri.
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Câmeras da comunidade registraram assassino à espreita, antes do crime
Um paraíso em luto
Agora, o Matadeiro tornou-se um lugar de luto e medo. Roger Gusmão, marido de Catarina, deixou Florianópolis e foi passar um tempo com a família em São Paulo. Deixou para trás os planos de construir uma casa na Praia dos Açores, com obras previstas para iniciar em janeiro.
— Ela faz muita falta. Não fecha às vezes, não dá para acreditar. É tão rápido — relata.
Bia, a amiga de natação, pensa em se mudar:
— O rosto da Catarina não sai da minha cabeça — conta.
O impacto do feminicídio fez com que muitas mulheres se vissem refletidas em Catarina. No sábado, dia seguinte ao crime, uma manifestação reuniu moradores, amigos e pessoas sensibilizadas com a causa.
— A gente não pode permitir que ela se transforme em estatística, que ela seja só uma a mais. Não, ela era a Catarina que nadava, que tocava flauta, fazia mestrado, que cuidava dos bichinhos de rua. Essa história toda, esse legado todo, precisa respirar com a gente — defende Carla Teixeira, colega de natação e do grupo de música do qual Catarina fazia parte.
Regina Davila Feldmann, professora de natação de Catarina, diz que nada mais é o mesmo após o caso.
— Na primeira aula [após a tragédia], a gente fez uma homenagem, uma espécie de coroa de flores em um espaguete. E aí pedimos para os alunos levarem para o mar e ficarem nadando, nadando… A gente não deu aula. Todos precisavam daquilo — recorda.
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Crime abalou colegas de natação de Catarina
Comunidade se mobiliza
Na esteira da comoção, surgiu uma petição on-line para mudar o nome da Praia do Matadeiro para Praia Catarina Kasten. O nome atual remete ao período em que baleias eram abatidas ali, quando a caça era legalizada no Brasil.
A proposta, no entanto, não é apoiada pela maioria dos moradores. Ana Cristina Rossi, presidente da Associação de Moradores da Praia do Matadeiro, explica:
— A gente entende, respeita [os amigos da Catarina], mas não temos intenção de apoiar esse tipo de mudança, porque também é a nossa história, a existência dos pescadores de longa data. Há várias famílias tradicionalmente pesqueiras aqui.
A comunidade, segundo ela, pensa em outras formas de homenagem, como instalar um memorial ou uma placa no início da trilha.
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— A gente não vai deixar a memória da Catarina se resumir a essa tragédia. Ela era uma menina de muita luz.
Ana Cristina reforça que, embora a região tenha registros de furtos, um crime com essa violência é inédito.
— A gente tem um contexto de medo por ser mulher, mas nunca imaginou que algo assim pudesse acontecer no Matadeiro. A gente tem que ressignificar aquela trilha que ama. Não queremos reduzir o Matadeiro ao que ocorreu. A trilha faz parte da nossa infância, da nossa existência.
Luta por segurança
A prioridade agora é a segurança. A associação organizou um curso de defesa pessoal para mulheres, com primeira aula no próximo sábado (29). Demandas como mais câmeras de monitoramento e mais policiamento na região são antigas — e ganharam urgência.
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O comandante do 4º Batalhão da Polícia Militar, Fernando Vidal, afirma que a região da Armação não tem alta incidência de atendimentos da PM nem registro de crimes graves. Atualmente, a 3ª Companhia do batalhão é responsável por atender a Armação e todo o Sul da Ilha.
Segundo ele, durante o verão, haverá reforço:
— Teremos uma equipe de policiais na região da Armação no período diurno, e no período noturno mais uma guarnição que irá atender o Extremo Sul da Ilha, além da 3ª Companhia que já atende a região — explica.
Em nota, a prefeitura de Florianópolis informou que a equipe responsável pela Contribuição para Custeio da Iluminação Pública (COSIP) irá até o local para realizar uma avaliação técnica sobre a possibilidade de implantação de novos pontos de iluminação na região da Armação/Matadeiro.
“A Guarda Municipal de Florianópolis realiza rondas regulares e ações preventivas em várias regiões da cidade para garantir a segurança da população, com intensificação da vigilância em bairros de praia durante a temporada de verão. Além disso, a Prefeitura de Florianópolis está investindo no videomonitoramento da capital, com totens que ajudam a coibir quaisquer tipo de assédio ou violência, além de equipar as câmeras com tecnologia de reconhecimento facial, que vão auxiliar na busca e identificação de suspeitos e ampliar a eficiência da resposta das forças de segurança”
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Para as mulheres do Matadeiro e da Armação, a luta agora é para que a memória de Catarina — cujo nome remete a Santa Catarina de Alexandria, padroeira do Estado, dos estudantes e dos professores e que teve a data celebrada esta semana — não seja soterrada pela violência, mas se transforme em força e legado por um futuro em que nenhuma outra mulher tenha seu paraíso interrompido.
— A gente está se mobilizando, a gente está se fortalecendo entre as mulheres. Aqui, a natação é uma força. Porque é o que ela gostava de fazer, então nós temos que continuar fazendo juntas — diz Bia.














