Cíntia Aldaci da Cruz, de 38 anos, é presidente da Associação Revolução dos Baldinhos, iniciativa premiada na Alemanha que promove a compostagem de resíduos orgânicos nas comunidades urbanas localizadas na periferia de Florianópolis. Além de ser uma referência ambiental para os moradores de comunidades da Ilha de Santa Catarina, Cíntia se define como mulher negra e mãe, nascida e criada dentro do complexo do Monte Cristo, que abriga seis favelas na capital catarinense.
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Filha de mãe solo com três filhos, as memórias de infância de Cíntia são marcadas principalmente pelas casas onde a mãe trabalhava como empregada doméstica. Com a matriarca muitas vezes ocupada com dois ou três empregos, Cíntia se recorda dos cuidados e da visão de mundo que foram passados a ela pelos dois irmãos.
Desde a infância, a menina já tinha consciência das dificuldades que cercavam quem nasce nas comunidades:
— Estudar era resistência desde cedo. É a força de quem entende o que é nascer onde a cidade se esquece de chegar, mas onde a vida insiste em brotar. Eu via colegas largando estudos, até eu chegar a largar também. Fui mãe aos 15 anos. Minha mãe, que não conseguia mais acompanhar os filhos porque tinha que trabalhar, sempre dizia: “se você não estudar, vão decidir tudo por você”.
Já na vida adulta, ela optou por decidir por si. Então, hoje, conclui o ensino médio pela Educação de Jovens e Adultos (EJA) e pretende fazer um curso técnico em meio ambiente no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), em Florianópolis.
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A relação de comunidade de Florianópolis com Chico Mendes, o maior ambientalista do Brasil
Revolução nas comunidades nasceu com mulheres
A Revolução dos Baldinhos, reconhecida como uma das 15 práticas excepcionais em agroecologia do mundo em 2019, nasceu desse lugar que Cíntia nasceu e se viu crescer. O movimento começou em 2008, em resposta a um surto de ratos causado pelo excesso de lixo, principalmente por causa dos resíduos orgânicos descartados inadequadamente nas ruas na comunidade Chico Mendes. Na época, dois moradores morreram por leptospirose.
O movimento foi incentivado, ainda, por outros motivos:
— Não foi só por causa do lixo ou do rato; foi porque a gente cansou de esperar. Porque as crianças brincavam em becos com ratos e ninguém ligava. Porque a periferia não é suja, ela é abandonada. E foi aí que a gente pensou: nós por nós. Temos que fazer por nós — pontua.
A mobilização começou com mulheres da comunidade, junto a uma parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que passou a promover oficinas de compostagem doméstica, utilizando baldinhos plásticos como recipientes para armazenar os resíduos até que fossem levados aos pontos de compostagem. Daí que surgiu o nome “Revolução dos Baldinhos”.
— No começo, éramos um grupo de mulheres. Mães, avós, vizinhas. E eu acredito que esse início feminino mudou tudo. Porque quem carrega o balde, quem cuida do lixo, da comida, das crianças e da comunidade sempre fomos nós mulheres. O projeto tem esse olhar cuidadoso, atento, porque veio do cuidado, mesmo, de quem vive a precariedade todos os dias, mas escolhe transformar — relata.
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O projeto funciona assim: os resíduos orgânicos, como os restos de comida, por exemplo, são recolhidos pelo grupo nas casas, escolas e creches. Então, com esse material é feita a compostagem, que vira adubo e é entregue aos moradores para que utilizem em suas hortas e pequenas plantações orgânicas, resultando em alimentos saudáveis.
Já o restante do lixo, que segue para a coleta pública, sem a mistura de restos de comida, fica seco, sem mau cheiro, não suja a rua e pode ser facilmente manuseado. Com a atitude, também é feita a triagem de materiais para que seja encaminhada a parte que pode ir para a reciclagem.
Em outubro deste ano, o movimento completa 17 anos. Atualmente, a associação é composta por 11 associados, todos moradores da comunidade, além de colaboradores, voluntários e parceiros institucionais. O projeto atende 15 ruas, onde realiza a coleta seletiva de resíduos orgânicos domiciliares, processos de compostagem comunitária, produção de adubo e o cultivo de hortas urbanas.
— Só não temos capacidade de evoluir o projeto para todo o complexo do Monte Cristo porque a gente não recebe pelo pagamento de serviço ambiental — compartilha.
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O Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) é um instrumento de política pública que remunera pessoas ou grupos que prestam serviços ambientais, como a conservação ou recuperação de ecossistemas. De acordo com Cíntia, o projeto já procurou a Prefeitura de Florianópolis em mais de uma ocasião — por meio de diálogo, ofício ou proposta —, mas não obteve resposta.
Procurada pelo NSC Total, a prefeitura informou que já realiza o PSA através de chamamento público para iniciativas de compostagem. Ainda segundo o poder executivo, desde a implantação do programa, foram firmados quatro contratos e, atualmente, dois continuam ativos, com remuneração mensal. A nota (veja abaixo) termina informando que “na época da abertura do edital, a Associação Revolução dos Baldinhos não se inscreveu para participar”.
Cíntia rebate, dizendo que falta investimento e atenção para que a periferia seja, de fato, ouvida:
— A periferia não é carente, ela é potente. E o que falta nela não é talento, nem ideia, nem força. Falta investimento, escuta e respeito. Enquanto isso não vem, seguimos com o que temos: nossas mãos, nossas redes, nossa memória e a certeza de que a revolução pode muito bem começar por mulheres — rebate Cíntia.
Ainda que com limitações, a líder ambiental olha, hoje, para o que a comunidade construiu e se emociona.
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— Nunca imaginei que a gente teria uma cozinha comunitária e que o adubo feito no quintal da escola serviria para horta da escola e dos moradores, que as crianças iriam crescer aprendendo que lixo é responsabilidade nossa. E que cuidado também é política — diz.
Projeto conversa com desafios enfrentados pela comunidade
Quando se tornou presidente da Associação Revolução dos Baldinhos, Cíntia desenvolveu um espaço para que a economia circulasse dentro das favelas. Foi aí que surgiu o “Brechó Teu Jeito”, que vem com o objetivo de fortalecer mulheres ao impulsionar a renda de famílias por meio da costura.
Ainda pensando na comunidade e nos desafios enfrentados por ela, Cíntia também criou a primeira cozinha comunitária do município de Florianópolis, que atualmente atende 2.400 famílias da comunidade Chico Mendes e Nossa Senhora da Glória.
— O projeto conversa com a minha pessoa enquanto moradora, que enfrenta diariamente todo o abandono que o sistema e o Estado emprega nos territórios periféricos. Essas propostas surgiram quando resolvi trabalhar o ser que gera o resíduo, entendendo que o impacto vem de nós pra nós.
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O projeto retira da comunidade, por ano, 78 toneladas de lixo, e luta por políticas públicas que incluam o gerenciamento de resíduos no território periférico. Um dos desejos da associação também é potencializar as ações das associações de catadores de orgânicos e destacar o impacto da transformação territorial causada pela iniciativa. A ideia é valorizar a matéria-prima ao gerar emprego e renda dentro das periferias, segundo Cíntia.
— Esse processo só foi possível porque moradores abriram a comunidade para receber a universidade. Nascendo da articulação de mulheres, o projeto traz a sensibilidade e a empatia, pois acolher a necessidade do outro mesmo com a sua é um processo feminino, que cuida, pensa e resiste lutando por políticas públicas — agradece Cíntia.
Veja fotos das iniciativas do projeto
Leia a nota da prefeitura na íntegra
“A Prefeitura de Florianópolis informa que já realiza o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) através de chamamento público para iniciativas de compostagem. Desde a implantação do programa, foram firmados quatro contratos e, atualmente, dois continuam ativos, com remuneração mensal. Na época da abertura do edital, a Associação Revolução dos Baldinhos não se inscreveu para participar“.
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*Sob supervisão de Giovanna Pacheco
Antonietas
Antonietas é um movimento da NSC que tem como objetivo dar visibilidade a força da mulher catarinense, independente da área de atuação, por meio de conteúdos multiplataforma, em todos os veículos do grupo. Saiba mais acessando o link.

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