Nos últimos meses, algumas celebridades chamaram atenção para o termo “não-binário”: Bárbara Paz, artista e cineasta, disse em entrevista que, já durante a pandemia, entrou em contato com o conceito de não-binarismo, e se identificou.
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– Não tive a cultura dentro de casa de perguntar sobre sexualidade. Tudo o que aprendi foi lendo em revistas. Não se falava disso – disse, ao ator e jornalista Paulo Azevedo. – Muitos homens habitam dentro de mim. Quando ouvi esse discurso do não-binário, do transgênero, pensei: “Será que, se eu tivesse escutado isso com 12 ou 13 anos, eu teria achado que eu era, pelo fato de eu sentir isso?” Gosto de ser menino e de ser menina. Pode? Hoje pode! Cada vez mais a gente consegue respirar e ser a gente.
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Demi Lovato também veio a público falar sobre a questão:
– Quero aproveitar este momento para compartilhar com vocês algo muito pessoal. Durante o último ano e meio, tenho feito algum trabalho de cura e auto-reflexão, e através deste trabalho tive a revelação de que me identifico como não-binárie. (leia mais sobre linguagem neutra no trecho final da reportagem) – afirmou, em um vídeo publicado no Instagram. – Com isso dito, estarei oficialmente mudando meus pronomes para “they/them”. Quero deixar claro que ainda estou aprendendo. Não pretendo ser especialista ou porta-voz de ninguém.
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O termo, é claro, ainda desperta muita confusão, dúvidas e polêmica: não falta quem aponte alegações como as de Bárbara e Demi como modismos ou tentativas de chamar atenção. E há ainda a pura falta de informação: muita gente nunca ouviu falar ou nunca parou para tentar entender o não-binarismo. Vamos, portanto, começar do começo: o que é, afinal de contas, ser uma pessoa não-binária?
– O termo “não-binário” surge para desconstruir toda uma engrenagem social baseada em polaridades opostas. – explica a psicóloga Graziela Judith Bonatti. – Uma pessoa trans é aquela que não se identifica 100% com o gênero do seu sexo biológico. Então, existem pessoas trans binárias, que se identificam como homens ou mulheres transgêneros; e as trans não-binárias, que não se veem como homem ou mulher.
Basicamente, as pessoas trans não-binárias não se classificam exclusivamente em nenhum dos gêneros binários. São pessoas que podem se sentir transitando entre os dois gêneros, por exemplo, sem necessariamente fazer parte de um deles. Alguém que se identifica dessa forma pode classificar sua identidade de gênero de várias maneiras: agênero (ausência total de gênero), bigênero (identidade de gênero dupla), gênero fluido… Mas o que essas pessoas têm em comum é a não-limitação de suas identidades e expressões de gênero exclusivamente ao que é tradicionalmente associado a um gênero binário ou outro (ou seja, masculino ou feminino).
Diferentes vivências e expressões
– Eu comecei a me perceber como não-binárie desde muito cedo, mas não conhecia esse termo. Então eu não sabia nem como me expressar em relação a isso – explica Jesus Lumma, que é artista, designer, e mora em Joinville. – Desde criança eu já tinha comportamentos intuitivos de vestir as roupas da minha mãe, da minha irmã. Claro, como era muito novo, eu nem sabia o que era determinado socialmente como “masculino” ou “feminino”, mas minha expressão de gênero já ficava fora disso que é definido como “masculino.” Era algo que me vinha naturalmente.
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– As pessoas começaram a dizer que eu “não podia” fazer isso, que existiam essas duas caixinhas, digamos assim, do masculino e do feminino, e que eu era um menino e devia me encaixar na primeira – prossegue Jesus. – Quando eu cresci e aceitei minha sexualidade, eu parei de me importar em tentar “parecer homem”, “parecer masculino”. Antes parece que eu tinha que performar uma masculinidade para “não parecer gay”. Então eu passei a me expressar da minha forma, que muitas vezes, nos meus trejeitos, na minha voz, nas roupas que eu gosto de vestir, é composta de aspectos ou traços associados ao feminino. Comecei a me questionar se eu não seria, na verdade, uma mulher trans. Mas eu também não me via totalmente dentro do feminino: me via livre para transitar entre os dois e me expressar da forma que eu quisesse.
Essa confusão é normal – até pelo que se chama de “heterocisnormatividade”: ou seja, a adoção pela sociedade do padrão hétero e cisgênero (termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer) como norma.
– É uma sensação de que só existem essas possibilidades para se viver – diz Jesus. – E isso faz muita gente sofrer, porque as pessoas acabam tentando se encaixar em coisas que não são. O conhecimento, o acesso à informação, é extremamente importante. Até descobrir o não-binarismo, eu achava que estava fazendo alguma coisa errada; que eu precisava ser masculino ou feminino; que não dava para me expressar de outro jeito, ter outra identidade. As nossas expressões são tantas, né? Somos seres tão complexos. A definição de masculino e feminino não dá conta de todo mundo.
– O conceito de normalidade pode ser compreendido como “norma” ou “normativa” e estar vinculado à ideia de “maioria”, ou seja, “se a maioria é assim, então isso é ser normal” – comenta a psicóloga Graziela. – Numa sociedade que tem suas ideias construídas a partir de muitas categorizações binárias (dia e noite, bem e mal, quente e frio, amor e ódio, direita e esquerda, certo e errado, homem e mulher…) é “normal” desconsiderar toda a infinidade de possibilidades e combinações que existe “entre” todos esses opostos.
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– A diversidade faz parte da vida – ela prossegue. – Basta observarmos a natureza e sua exuberante quantidade de seres e expressões de formas, comportamentos e cores. Nós fazemos parte dessa natureza também. Somos diversos e somos únicos. Por que teríamos todos, todas e todes que caber dentro de um conceito ou de outro? Ser isso ou aquilo? Será que conseguimos aceitar que podemos ser isso e aquilo? Ou que podemos ser algo novo e inesperado? A teoria de gênero não rejeita a existência do feminino e do masculino, mas sim a representação dogmática do binário como única forma de categorizar pessoas. Não existem apenas duas formas de entender gênero, assim como não existem apenas duas formas de compreender a vida.
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Jesus diz se sentir privilegiade pelo apoio que recebeu da família.
– Acho que minha mãe viu que eu não mudei por me perceber e me assumir como não-binárie: eu continuo sendo a mesma pessoa de sempre, e nós nos amamos e nos respeitamos independente disso – diz. – Ela só aprendeu uma palavra nova, mas que não mudou quem eu sou. Tenho várias amigas trans que foram expulsas de casa quando começaram a se entender e se assumir. Mas eu não culpo os pais que fazem isso, sabe? Eles cresceram dentro de uma estrutura que condena isso. Por isso é tão importante falarmos sobre o assunto e normalizarmos nossa existência.
Para evitar preconceitos, o silêncio
Alex*, por exemplo, é uma pessoa trans não-binária, que mora em Florianópolis, e prefere ser chamada por pronomes femininos – mas frequentemente deixa que seus colegas e conhecidos se refiram a ela no masculino, por medo de sofrer preconceito.
– Pra mim, é ruim me comunicar e me identificar dessa forma, porque desde sempre eu tive um afastamento de tudo que é considerado masculino; e, mesmo assim, sempre tentei me adaptar a esse meio – explica. – Desde que me entendi como não-binária, tenho tentado me afastar desse conceito. Se eu não sou necessariamente um homem, eu não preciso atender a essas adequações, responder aos pronomes masculinos. Evito os pronomes masculinos mais por essa questão, que pra mim é meio traumática. Mas não sou uma mulher trans.
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– Eu tenho questionado meu gênero durante boa parte da minha vida; principalmente a partir do início da puberdade, quando o corpo da gente começa a mudar – relata Alex. – Eu lembro claramente que, no fim da adolescência, eu decidi ir fazer um teste de HIV, e, na hora de preencher o formulário e assinalar meu gênero, eu fiquei indecisa. O rapaz que estava me atendendo era muito carismático, e eu me senti à vontade para dizer para ele que achava que, na verdade, eu era não-binária. A partir daí eu comecei a pesquisar, aprender mais sobre o assunto, sobre estudos de gênero.
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Mesmo assim, Alex só abordou o assunto, até hoje, com amigos e familiares muito próximos.
– É muito triste a gente ter que se esconder, evitar falar sobre isso. Eu evito tocar nesses assuntos dentro do meu ambiente de trabalho, do meu ambiente acadêmico – ela lamenta. – A gente nunca sabe como as pessoas vão reagir. Eu acabo me reprimindo porque não acho que, no meu tipo e ambiente de trabalho, eu seria aceita. Na minha família mesmo eu me abri com poucas pessoas que sei que são mais abertas sobre o tema. Meu pai, por exemplo, é extremamente homofóbico. Tenho muito receio de falar com ele sobre isso.
A linguagem neutra
No quarto parágrafo deste texto, dissemos que Demi Lovato, ao se anunciar como pessoa não-binária, declarou sua preferência pelo pronome “they”: “they”, em inglês, não tem marcação de gênero – a palavra pode significar, igualmente, “eles” ou “elas”; e, assim, vem sendo adotada por pessoas não-binárias como uma alternativa ao uso de “she” (“ela”) ou “he” (“ele”). A língua portuguesa não conta com uma alternativa neutra a pronomes como “ela”, “elas”, “ele”, “eles” – assim, novos pronomes começaram a surgir para suprir essa necessidade.
Há, por exemplo, o Sistema Elu, em que os pronomes “ele” e “ela” são substituídos por “elu” – e todas as palavras relacionadas mudam de acordo: elus, delu, delus, nelu, nelus, aquelu, aquelus… Há também outros sistemas, como o Ile (ile, iles, dile, diles, nile, niles, aquile, aquiles); o Ilu (ilu, ilus, dilu, dilus, nilu, nilus, aquilu, aquilus); o El (el, els, del, dels, nel, nels, aquel, aquels)…
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Por algum tempo, usou-se também o a letra x ou o símbolo @ para substituir as letras que marcam gênero em determinadas palavras, mas esse tipo de sistema é desencorajado por ser impraticável na linguagem oral – além de dificultar o acesso ao conteúdo por parte de pessoas cegas, surdas, com TEA (transtorno do espectro autista) ou dislexia, já que os softwares utilizados na leitura de textos não reconhecem as palavras com marcadores como “x” e “@”.
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A linguagem neutra também é composta de mudanças em outras palavras, como adjetivos e pronomes indefinidos, que tem o “o” ou “a” alterados para “e”: “bonite”, “juntes”, “todes”… É claro, há quem sinta arrepios só de ver as palavras da língua portuguesa escritas assim, de forma aparentemente “errada”. Em meados de junho, chamou atenção um decreto do governo de Santa Catarina que vetou o uso da linguagem neutra nas escolas públicas e privadas, sob a justificativa de que os estudantes devem ter o “direito de aprender a norma culta e como ela está estabelecida ao longo dos séculos”.
– Língua não funciona por decreto, como gostariam alguns estudiosos e alguns políticos: língua funciona pelo uso – diz Nathalia Muller Camozzato, professora e pesquisadora em linguística. – A língua tem uma produtividade que lhe é própria e que a atualiza ao longo do tempo; caso contrário, ainda estaríamos falando latim ou as línguas românicas arcaicas. É engraçado porque sempre se fala que a língua é viva, e sempre há pessoas que parecem agir de forma a buscar estancar esse fluxo que caracteriza a língua e seus processos de mudança.
– Também é importante lembrar que isso que chamamos de “norma padrão” é uma das modalidades de uso da língua entre as múltiplas existentes – destaca Nathalia. Afinal de contas, quem pode dizer que usa 100% da norma padrão nas falas do dia a dia, com amigos e familiares; ou mesmo nas mensagens trocadas e postadas na internet? – Sendo uma diante da multiplicidade, ela é por definição excludente. Quem fala em “erro” e “acerto” nos fenômenos de linguagem está falando em nível de senso comum, e não como um estudioso. Cada modalidade linguística vai ser usada em determinado contexto e com determinada comunidade.
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Para exemplificar a evolução da língua, Nathalia cita a adoção definitiva de estrangeirismos (como “deletar”) e mesmo a criação de novos verbos (como “upar”): esses aspectos da língua que podiam ou ainda podem ser considerados incorreções se comparados à norma padrão, mas já estão incorporados à língua usada pelas pessoas no dia a dia.
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– As palavras manifestam a existência das pessoas e das coisas. Quando você cresce imerso em um idioma que não nomeia, não reconhece o seu gênero, é como se você não existisse – comenta Jesus Lumma. – Você fica se procurando na própria língua e não se encontra. A linguagem neutra é sobre incluir a existência de pessoas não-binárias na língua. É a partir da língua que nós construímos novos imaginários e, a partir deles, novas realidades.
– Acho curiosa essa saída em defesa de uma estrutura da língua antes de uma escuta ao que dizem as comunidades que não se sentem representadas pelas formas e usos existentes – reflete a linguista Nathalia. – Em minha leitura, como estudiosa, isso diz menos do funcionamento lógico-gramatical da língua e mais de uma posição política atravessada por misoginia e fobia diante de outras expressões de gênero e sexualidade que não a cisgênera e heterossexual. É o fortalecimento do diálogo com comunidades não-binárias que vai caracterizar possibilidades criativas e de uso da língua e sua implementação estrutural.
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