O acidente com um balão de ar quente que matou oito pessoas em Praia Grande, no último fim de semana, trouxe à tona as fragilidades provocadas pela precária regulamentação do balonismo como prática turística no país. Embora todos os anos cerca de 8 mil voos ocorram somente na cidade do Sul de Santa Catarina, a atividade é oferecida com base em um regulamento considerado brando por muitos pilotos. Existe outro modelo de regulamentação, mais rigoroso, mas nenhuma empresa tem essa habilitação no Brasil atualmente, segundo a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).
Continua depois da publicidade
A Sobreavoar, que operava o voo do acidente, tinha as autorizações previstas no Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) 103, conforme informou a Polícia Civil. Nessa norma, os balões não precisam ser certificados e não há garantia das autoridades sobre a segurança do voo. Também “não exige habilitação de piloto ou certificado de aeronavegabilidade emitidos pela Anac”, segundo texto da própria norma da agência. O RBAC 103 cobra apenas que o operador tenha cadastro de aerodesportista e comprove “conhecimentos mínimos para o cumprimento das regras operacionais e do espaço aéreo”.
O balonismo é uma das principais atividades econômicas de Praia Grande, que tem o título de Capital dos Cânions e reúne belas paisagens. Com pouco mais de 8 mil moradores, a cidade tem cerca de 30 empresas ligadas à atividade e aproximadamente 500 pessoas envolvidas com os voos, de acordo com dados da prefeitura.
O Ministério do Turismo sabe desse potencial turístico, tanto que esteve na cidade no começo deste mês, inclusive com a Anac. Durante a visita, a secretária nacional de Turismo, Cristiane Sampaio, defendeu a criação de regras específicas para a operação turística e comercial da atividade.
Isso porque existem regras para o balonismo no Brasil. Mas nenhuma delas trata exclusivamente de passeios turísticos, o que causa insegurança jurídica a quem trabalha no segmento. Ao pé da letra, os voos que ocorrem hoje são enquadrados como prática esportiva, para fins de competição, por exemplo, para lazer individual de piloto ou de instrução. É nessa categoria que acontecem os passeios de Praia Grande. Tudo isso dentro da chamada RBAC 103. Para dar mais segurança às empresas do setor e para os turistas, Cristiane pede um complemento às normas já existentes da Anac:
Continua depois da publicidade
- Criação de um cadastro específico de operadores turísticos de balonismo no Cadastur;
- Definição de critérios para autorização de voos em áreas urbanas, rurais e de conservação ambiental;
- Legislação específica para a atividade incluindo o balonismo na cena do turismo brasileiro.
— Temos que ter uma regulamentação clara, harmonizada entre o Ministério do Turismo, a Anac e os municípios para que a atividade seja desenvolvida de forma segura, com estímulo ao investimento e sem riscos operacionais. Por isso, defendemos a criação de uma normativa conjunta que estabeleça regras para fortalecer o setor com segurança e organização — afirmou a secretária à época.
Após o acidente, o Ministério do Turismo disse que uma reunião sobre o tema voltaria à pauta nos próximos dias. Entretanto, ao ser questionado pela reportagem se o encontro ocorreu e o que foi debatido, a pasta não respondeu. A Anac também tem evitado maiores esclarecimentos sobre o assunto, manifestando-se apenas por meio de nota. Porém, segundo a prefeitura de Praia Grande, a agência informou que vai elaborar um documento emergencial para regularizar a prática do balonismo turístico.
Em uma das notas enviadas à imprensa, a Anac frisou que no país são “permitidas operações com balão como prática desportiva. A prática desportiva de balonismo, assim como de outros esportes radicais, é considerada de alto risco por sua natureza e características, ocorrendo por conta e risco dos aerodesportistas. Uma pessoa somente pode embarcar outra pessoa em balão livre tripulado se o usuário estiver ciente de que se trata de atividade desportiva de alto risco”. Os passageiros, na maioria das vezes, inclusive os clientes da Sobrevoar, assinam um documento reconhecendo saber dos riscos.
Continua depois da publicidade
Confira imagens do caso
A norma mais rigorosa
No último fim de semana, ao confirmar a presença de especialistas em regulação da Anac na cidade, o órgão disse ainda ter ressaltado no encontro que “já existe possibilidade de operação de voos certificados, desde que aeronave, profissional e empresa atendam aos requisitos regulamentares. Esses processos de certificação seguem padrões internacionais de segurança”.
Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, a Anac está se referindo ao RBAC 61, apontado como mais rigoroso. Ele cobra, por exemplo, que o piloto tenha licença para voo de balão. Essa licença precisa ser tirada em Centro de Instrução de Aviação Civil (Ciac) devidamente autorizado pelo governo federal. É como se fosse uma autoescola validada do Detran, a título de comparação. O candidato a piloto também precisa passar no exame médico, na prova teórica e na prova prática de voo solo. Atualmente, cerca de 170 pessoas no Brasil têm essa certificação.
Depois, é preciso que o balão seja certificado, para garantir que está dentro das normas exigidas. Até mesmo a empresa fabricante do balão precisa ter certificação. Todas essas etapas têm custo elevado e são demoradas, apontam empresas do setor. Quando está tudo pronto, ainda é preciso solicitar uma autorização de serviço aéreo especializado. Uma empresa de São Paulo consultada pelo NSC Total informou que começou o processo de certificação há cerca de três anos e somente agora está em vias de conseguir as liberações. Atualmente, quatro empresas entraram com processo para conseguir esses documentos e aguardam as autorizações.
Murilo Gonçalves está à frente de uma associação de voos de instrução que reúne cerca de 40 pilotos e empresas que fazem os passeios em Praia Grande e cidades vizinhas. Ele afirma que a luta por regulamentação já se arrasta há uma década. Ele diz que a prática é segura, tanto que em quase 10 anos de atividade este foi o primeiro acidente com vítimas fatais. Na visão de quem trabalha no setor, as regras postas estabelecem critérios de segurança, mas é necessária a regulamentação específica para dar segurança a todos os envolvidos no processo.
Continua depois da publicidade
A regulamentação deve ser importante até para a retomada dos voos em Praia Grande. Desde o dia do acidente, os balões deixaram de colorir os céus da região em respeito às vítimas. A expectativa era que a atividade voltasse nesta sexta-feira (27), mas uma reunião com empresas, pilotos e prefeitura decidiu manter a data de retorno em aberto. Segundo Murilo, entre 60% e 70% dos voos agendados foram cancelados.
— A gente sempre lutou por essa regulamentação. Infelizmente teve que acontecer isso. O esporte continua seguro — frisa Murilo.
Infográfico mostra os detalhes de um balão
Brasil deve se inspirar onde serviço deu certo
Hasan Ayaş, guia de turismo na Capadócia, viu à distância a tragédia em Praia Grande. Eram 21 pessoas a bordo, das quais 12 turistas e o piloto sobreviveram. As imagens que correram o mundo mostram o balão em chamas no alto e o momento em que o cesto cai. O que os vídeos não trazem é o momento do pouso de emergência, quando o balão tocou o chão e 13 conseguiram pular, escapando da morte. As cenas fizeram as pessoas questionarem os procedimentos dos voos.
— As pessoas passaram a nos perguntar sobre a segurança dos balões — conta.
Ele descreve que na Capadócia, região mundialmente conhecida da Turquia por causa dos voos de balão, é exigido piloto licenciado, balões certificados, planos de voo autorizados por órgãos de aviação e, inclusive, plano de segurança e emergência, para garantir que a operação tenha protocolos em caso de acidente ou mau tempo.
Continua depois da publicidade
Gerardo Portela, doutor em Gerenciamento de Riscos com ampla experiência na aviação é enfático: existe uma lacuna de regulamentação para oferecer o serviço com segurança e diz que o Brasil precisa olhar para quem já aprendeu a fazer balonismo para se inspirar:
— A omissão na regulamentação e fiscalização é impulsionada pela falta de conhecimento dos próprios governos, até pela falta de visão de risco. O que a Anac precisa fazer é criar normas específicas para esse tipo de serviço ou então proibir, pois há lacunas e a população fica mais sujeita ainda a se expor a riscos desnecessários.
A cronologia de uma tragédia
A Polícia Civil ainda não concluiu o inquérito sobre o acidente com o balão em Praia Grande. Entretanto, ao que tudo indica, um maçarico, usado para acender as chamas que fazem o balão voar, deu início a um incêndio dentro do cesto onde estavam 20 turistas e o piloto. A fumaça foi percebida pelo grupo logo que o balão decolou, nas primeiras horas de sábado (21). De acordo com o inquérito, o passeio que deveria durar 45 minutos se tornou um pesadelo em quatro minutos.
Nesses quatro minutos, o balão decolou, o piloto percebeu o fogo, tentou apagar, mas o extintor não teria funcionado. Passageiros teriam usado as próprias roupas para tentar abafar as chamas. Elves Crescêncio avisou os turistas que faria um pouso de emergência, recomendou que todos ficassem abaixados e pulassem do balão assim que tocasse o solo. Ele e mais 12 pessoas conseguiram pular quando o balão chegou a uma plantação de arroz, mas como o peso no cesto ficou muito leve repentinamente, o balão voltou a subir.
Continua depois da publicidade
A essa altura, o incêndio já estaria fora de controle. Quatro vítimas morreram ao pular do balão, que ganhou altitude em questão de segundos. As outras quatro morreram carbonizadas dentro do cesto. Moradores presenciaram a cena, descrita por muitos deles como de horror, com pessoas gritando por socorro, outras se jogando do balão, alguns procurando por familiares que tinham ficado no balão quando ele arremeteu desgovernadamente.
Entre os 13 sobreviventes, cinco chegaram a receber atendimento hospitalar, mas não ficaram internados. Segundo a equipe médica, eles não apresentavam ferimentos, porém estavam bastante abalados psicologicamente. Quem se deparou com as vítimas mortas no quintal de casa também revelou não conseguir dormir à noite. O balonismo é praticado em Praia Grande desde 2017 e até então havia registrado quatro acidentes. Dois destes casos repercutiram nas redes sociais, com 10 pessoas feridas.
Quem são os oito mortos no acidente de Praia Grande
Leia também
O que se sabe e o que falta saber sobre a queda do balão em chamas em SC
“Tragédia no ar”: queda de balão com oito mortos em SC repercute na imprensa internacional
 
				 
                                     
                            
                            


















