Era por volta de 8h10min do dia 21 de junho quando uma moradora da comunidade da Cachoeira de Fátima, a cerca de oito quilômetros do Centro de Praia Grande, no Sul de Santa Catarina, viu seu mundo acabar. Ela escovava os dentes e arrumava o filho de 10 anos para ir ao trabalho quando uma pessoa despencou do céu e caiu no quintal de sua casa.
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O homem era Leandro Luzzi, de 35 anos, patinador artístico de Brusque que estava na cidade para realizar um sonho: andar de balão. Ele foi uma das oito vítimas que morreram após um balão operado pela empresa Sobrevoar pegar fogo no ar e cair. Quatro pessoas morreram carbonizadas e outras quatro, incluindo Leandro, decidiram pular do equipamento, mas não resistiram aos ferimentos.
— Aquilo ali tudo, assim, na minha frente. E acabou. Acabou o mundo — diz a moradora, que preferiu preservar a identidade.
O primeiro pensamento da mulher foi de que aquilo se tratava de um acidente de avião. Isto porque o barulho do balão, alto sobre sua casa, parecia uma turbina.
— Hoje, não consigo mais ouvir. É o barulho da morte.
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Ela conta que foram duas noites sem dormir e dias encontrando pertences de Leandro pelo pátio. No dia em que o NSC Total visitou a comunidade, a moradora mandaria o relógio e uma pulseira à família do rapaz pelo correio. Enquanto isso, faz terapia e toma remédios para superar o trauma dos balões, causado há um mês em decorrência da tragédia.
O acidente mudou totalmente a vida na comunidade de Cachoeira de Fátima, que fica a 800 metros de um dos campos de decolagem mais usados pelos balonistas de Praia Grande. Quase todas as manhãs, os moradores eram acostumados a ver e cumprimentar os turistas que sobrevoavam o bairro.
Agora, eles evitam tocar no assunto, pois todos têm histórias: os que presenciaram as quedas, os que ajudaram os sobreviventes ou os que tentaram de alguma forma socorrer as vítimas que queimaram dentro do equipamento. A escola localizada no bairro, por exemplo, pediu aos pais que evitassem comentar sobre o acidente em casa, pois algumas crianças ficaram traumatizadas.
— O barulho daquele fogo pertinho, você começa a lembrar tudo. Você nunca vai esquecer — conta Francielle Santana de Moraes, de 30 anos, que mora a poucos metros de onde o balão caiu, às margens da rodovia PRG-411.
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Balão ficou poucos minutos no ar
O balão que caiu era comandado por Elves Crescêncio, um dos sócios da Sobrevoar. Na manhã do dia 21 de junho, o equipamento com 22 pessoas foi um dos últimos a decolar do campo, por volta das 8h. Pouco antes, outros balões desistiram do passeio, devido ao vento que começava a ganhar força.
O veículo de Elves ficou cerca de cinco minutos no ar. À polícia, Elves relatou que o fogo começou em um maçarico auxiliar que estava no chão do cesto e, em seguida, se espalhou para a capa de tecido que envolvia um cilindro de gás. Ele disse que jogou o maçarico para fora e tentou usar um extintor de incêndio que não funcionou.
Elves, então, forçou um pouso emergencial e avisou a todos que pulassem quando o balão tocasse o solo. Ele foi um dos primeiros a pular, segundo relatos dos sobreviventes. No total, 13 passageiros conseguiram sair. Com menos peso e mais fogo, o balão voltou a subir, levando oito pessoas que não conseguiram escapar.
Veja imagens de Praia Grande
A retomada dos voos
No dia 2 de julho, onze dias após a tragédia, os balões voltaram a sobrevoar Praia Grande. A retomada foi marcada pela criação, por parte da recém fundada Associação de Pilotos e Empresas de Balonismo (Abivaq), de um checklist com mais de 50 ações que os balonistas devem conferir antes de decolar e durante o voo.
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A lista inclui, por exemplo, a exigência de que os passageiros assinem termos de responsabilidade. Também pede um treinamento para pouso antes do voo. Além disso, todas as noites, um boletim meteorológico é emitido pela associação com as condições climáticas do dia seguinte, liberando ou não o passeio.
Segundo os balonistas, a maior parte do conteúdo da checklist já era adotado antes do acidente. As novidades são a exigência de instalação de dois extintores de incêndio em cada balão e de uma manta antichamas.
Murilo Gonçalves, presidente da associação e dono da empresa Voe nos Canyons, diz que os balonistas querem passar segurança aos clientes:
— A gente aguarda que (o balonismo) realmente se normalize. Até porque a gente quer passar o máximo possível de segurança, de que o que aconteceu foi um objeto externo e que não influencia no equipamento do balão, que é muito seguro e sempre foi.
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Acidente traz reflexos na atividade econômica
Desde o acidente, mais de 60% das reservas dos passeios de balão foram canceladas pelos clientes, segundo a associação. Uma delas foi Elsa Musselin, de 69 anos e moradora de Curitiba, que foi a Praia Grande com o marido, o filho, a nora e o neto. Os quatro embarcaram em um passeio de balão, mas ela não.
— Quando vi o acidente, falei: “eu não vou de jeito nenhum” — conta a idosa.
Em dias normais, o campo de decolagem da Cachoeira de Fátima teria a partida de cerca de 10 balões grandes. No dia em que o NSC Total visitou o local, eram sete balões pequenos, sendo que alguns voos eram exclusivos para casais ou famílias de até quatro pessoas.
Mauro Cechin, dono da fábrica de balões Victoria Balloons, única na cidade, teve que demitir cinco funcionários após a tragédia. Segundo ele, muitos balonistas que haviam enviado equipamentos para fazer vistoria suspenderam o pedido por questões financeiras.
— Temos que salvar a atividade. E a única forma de fazer isso é regulamentando — defende.
Um setor sem controle
Três semanas após o acidente, a Anac anunciou um plano para regulamentar as operações comerciais de balonismo no Brasil, que até então funcionavam sem certificação. Atualmente, em Praia Grande, a atividade ocorre apenas como aerodesporto (através do Regulamento Brasileiro da Aviação Civil, o RBAC 103) ou operação privada (RBAC 91), sem normas específicas para voos comerciais.
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Conforme a associação, cerca de 60% dos balonistas de Praia Grande, incluindo Elves Crescêncio, estão registrados apenas como aerodesportistas pelo RBAC 103, que se aplica exclusivamente a atividades recreativas e esportivas. Esse registro não exige licença de piloto ou certificado de aeronavegabilidade emitidos pela ANAC – basta comprovar conhecimentos mínimos por meio de uma prova online e obter uma certidão de cadastro de aerodesportista. Na prática, muitos pilotos da região aprenderam o ofício com balonistas mais experientes.
Por isso, segundo a Anac, quem voa de balão na modalidade aerodesportiva age por conta e risco. É por esse motivo também que os passageiros em Praia Grande assinam termos em que dizem estar cientes dos riscos.
Já outros pilotos de Praia Grande operam sob o RBAC nº 91, um regulamento mais rigoroso que exige certificado de aeronavegabilidade para o balão e Licença de Piloto de Balão Livre (PBL). Essa licença só pode ser obtida após formação em um Centro de Instrução de Aviação Civil (CIAC). Atualmente, há apenas um CIAC de balão livre ativo no Brasil: o da Rubic Balões, em São Paulo, com curso custando R$ 66,8 mil.
Conforme a Anac, nenhuma das operações em Praia Grande é certificada pelo RBAC nº 31, norma específica para aeronavegabilidade de balões, que exige testes de resistência, controle de peso, sistemas de segurança e inspeções periódicas. O primeiro balão brasileiro só foi certificado em 10 de julho, após a Rubic Balões submeter cinco modelos a avaliações e testes de segurança.
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De acordo com Marina Kalousdian, diretora da Rubic Balões, a certificação “muda tudo”.
— A certificação transforma completamente a forma de produzir, porque passa a exigir que todo o processo produtivo tenha rastreabilidade e garantia junto a todas as partes envolvidas — descreve.
Com o novo plano, a Anac quer criar critérios mínimos para explorar a atividade comercialmente. O intuito é migrar parte das atividades desenvolvidas na modalidade aerodesporto para um ambiente certificado.
“O balonismo possui grande potencial turístico e comercial e precisa de novas diretrizes, com estratégias de monitoramento e fiscalização das operações tanto por parte da Agência quanto das forças de segurança pública, prefeituras e outros órgãos locais, com todos atuando de forma coordenada”, reconheceu a Anac, em nota.
A fiscalização também vive em um limbo. No caso das operações aerodesportivas, o RBAC nº 103 já previa, antes do acidente, que os operadores permitissem inspeções a qualquer momento, se solicitadas pela Anac, pelo Departamento de Controle do Espaço Aéreo (Decea) ou por autoridade policial.
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Uma portaria de 2023 organizou melhor esse processo, com uma lista de infrações e medidas a serem aplicadas conforme o risco à segurança. Mesmo assim, essas medidas são indicativas e dependem da ocorrência de um fato concreto. O regulamento não estabelece uma rotina de fiscalização ativa.
Já para os voos sob o RBAC nº 91, considerados operações privadas, a responsabilidade recai principalmente sobre o piloto em comando, que deve garantir a segurança da aeronave e apresentar os certificados exigidos quando fiscalizado. A Anac pode atuar nesses casos, mas o regulamento também não especifica mecanismos de controle contínuo.
O NSC Total questionou a Anac sobre a fiscalização da atividade, mas não obteve retorno até a publicação.
O que mudou – e o que ainda precisa mudar
Localizada abaixo dos cânions que fazem a divisa com o Rio Grande do Sul, Praia Grande é conhecida pelas atividades de ecoturismo (como a famosa trilha do Rio do Boi e o boia cross no Rio Mampituba). Mas foi durante a pandemia que a cidade viu o balonismo se tornar uma das principais atividades econômicas do município, que ganhou a alcunha de “Capadócia brasileira”.
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O balonismo emprega direta e indiretamente cerca de 500 pessoas na cidade, que tem, no total, 8.602 habitantes, conforme estimativa do IBGE de 2024. Hotéis, restaurantes e mercados foram impactados pelo crescimento da atividade, que movimenta entre R$ 100 e R$ 150 milhões por ano, de acordo com a secretaria municipal de Turismo.
O sucesso do balonismo não ocorreu por acaso. Com os cânions “protegendo” a passagem do vento, Praia Grande se mostrou a paisagem ideal para o balonismo, conforme profissionais do ramo ouvidos pela reportagem. A primeira empresa foi a Voe nos Cânions, aberta em 2017, de propriedade de Murilo Gonçalves, que se inspirou no sucesso do balonismo em Torres, no Litoral do Rio Grande do Sul, que fica a 40 quilômetros da cidade catarinense.
Deu certo. Em pouco tempo, o balonismo na cidade se mostrou uma oportunidade financeira. Moradores relatam que algumas pessoas começaram a vender propriedades para comprar balões (cujo valor varia entre R$ 200 mil e R$ 600 mil atualmente). Cobrando passagens em torno de R$ 500 de cada passageiro, com voos quase todos os dias, o retorno vinha em meses.
— Comecei fazendo equipe no balão. Aí, vi que precisavam de transporte e botei uma Kombi para fazer o transporte. Uma coisa puxou a outra. Depois nós começamos a fazer hospedagem. E hoje a história tá aí. A gente tem 12 leitos lá [na hospedagem que possui] e também dois balões, um para 8 e um para 21 passageiros — contou um balonista.
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Nesse contexto, o regulamento RBAC n° 103 acabou se tornando a alternativa mais rápida e barata para aqueles que queriam começar a oferecer passeios.
— Com essa falta de formação adequada, a gente acaba tendo pilotos que se aventuram. É um problema gigantesco — diz Valdelania Neumann, proprietária da Aero Canyons, que integrou o grupo de discussão do projeto “Turismo Sebrae + Praia Grande”, junto ao Ministério do Turismo, à Anac e à prefeitura, que visa regulamentar a atividade e foi apresentado duas semanas antes da tragédia.
Conforme registros de Elves Crescêncio, a RBAC 103 dele foi emitida em maio de 2025, um mês antes da tragédia. Imagens da Sobrevoar publicadas nas redes sociais, no entanto, mostram o piloto comandando voos em janeiro. Documentos obtidos pela NSC revelam que Elves teria solicitado à Anac uma licença de PBL em dezembro de 2022, mas teve pedido indeferido porque não informou onde teria realizado a instrução prática.
O NSC Total pediu contraponto à defesa de Elves, que não retornou até o fechamento desta reportagem.
Justiça como legado
Desde o acidente, Tassiane Alvarenga transformou sua dor em luta. Sobrevivente do balão que matou o namorado, o médico de Fraiburgo Andrei Gabriel de Melo, ela cobra respostas da empresa Sobrevoar e das autoridades.
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— Desde o primeiro momento, fiquei revoltada. Não houve apoio para ninguém, nem para mim, nem para a família do Andrei. Quem se apresentou no hospital fui eu — diz a jovem de 30 anos.
Segundo Tassiane, a empresa só entrou em contato semanas depois, por meio de um advogado, oferecendo auxílio. Tassiane critica as irregularidades que emergiram após a tragédia, como o fato de o extintor não ter funcionado, conforme relato de Elves, e a ausência de treinamento.
— Em nenhum momento foi passada nenhuma orientação para nós, de qualquer tipo de protocolo, de meio de tentar se salvar, alguma explicação, nada do tipo — diz Tassiane.
Agora, ela busca na Justiça garantir que o que aconteceu com ela não se repita:
— Não quero que outras pessoas passem pelo terror que vivemos. Andrei era a melhor pessoa, para mim, para a família, para os pacientes. Ele não merece que isso fique impune.
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A investigação sobre o caso está à cargo do delegado Rafael Chiara, da Delegacia de Polícia de Santa Rosa do Sul. Conforme a assessoria de imprensa da Polícia Civil, nesta semana, a Polícia Científica fará uma perícia e testes no extintor e no maçarico encontrados durante a reconstituição do caso. Mais detalhes sobre a investigação não foram divulgados.
A Prefeitura de Praia Grande informou que acompanha as investigações e “tem se colocado à disposição das autoridades para fornecer todas as informações que competem à administração pública”. A Secretaria de Turismo também disse que defende a regulamentação completa da atividade comercial e turística do voo de balão.
Veja a última nota da Polícia Civil, de 26 de junho
“A Polícia Civil de Santa Catarina, em conjunto com a Polícia Científica, realizou nesta quarta-feira (26) uma nova etapa da investigação sobre o trágico acidente com balão ocorrido em Praia Grande. A ação incluiu uma reconstituição com base na versão apresentada pelo piloto, além de uma varredura técnica no local do acidente e análise dos destroços.
No vídeo divulgado, o delegado de Santa Rosa do Sul, Rafael Chiara, explicou que participaram da ação oito peritos da Polícia Científica e cinco policiais civis. Durante a varredura no local da queda, foi encontrado um maçarico — equipamento utilizado para reacender a chama piloto do balão — que era a última peça ainda não localizada e considerada essencial para as análises periciais.
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Posteriormente, a equipe seguiu até a sede da empresa responsável pelo voo, onde o piloto apresentou uma simulação da dinâmica do acidente conforme sua versão dos fatos. Ainda durante a tarde, os peritos analisaram os destroços que estão armazenados em um espaço cedido pela Prefeitura de Praia Grande, o que permitirá a conclusão dos laudos técnicos pendentes.
O delegado Chiara informou que já foram ouvidas mais de 20 pessoas, entre vítimas, o piloto, funcionários da empresa de voo e também o proprietário da fabricante do balão, que contribuiu com informações técnicas importantes para o inquérito. A fase de oitivas está encerrada, e a investigação segue em andamento. A Polícia Civil aguarda agora o resultado do trabalho da Polícia Científica, com a finalização dos laudos periciais.”
Veja a nota da Prefeitura de Praia Grande
“A Prefeitura de Praia Grande acompanha atentamente os desdobramentos do inquérito conduzido pela Polícia Civil e, desde o início, tem se colocado à disposição das autoridades para fornecer todas as informações que competem à administração pública. Confiamos plenamente no trabalho das forças de segurança do Estado de Santa Catarina.
A Prefeitura já vinha dialogando com os órgãos federais mesmo antes do acidente. No dia 6 de junho de 2025, foi realizada uma reunião em Praia Grande com representantes da ANAC e do Ministério do Turismo para tratar da regulamentação da atividade comercial de balonismo no município.
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A administração municipal defende a regulamentação completa da atividade comercial e turística do voo de balão em Praia Grande. Essa atividade tem impacto direto na economia local, gerando mais de 500 empregos diretos e indiretos, além de movimentar entre R$ 100 a R$ 150 milhões por ano no município. A Prefeitura busca garantir segurança jurídica e operacional para os empreendedores, trabalhadores e turistas.
Desde os primeiros dias após o ocorrido, a Prefeitura mobilizou um grupo de trabalho para coordenar ações voltadas à comunicação institucional, marketing e promoção do destino turístico. Também estão sendo realizadas ações com influenciadores, veículos de imprensa e outras estratégias para preservar a imagem da cidade como destino seguro e acolhedor.
A Prefeitura de Praia Grande reforça que não possui autorização nem competência legal para fiscalizar ou controlar a atividade de balonismo. Essa atribuição é de responsabilidade exclusiva da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), conforme previsto na legislação federal. Por isso, o município vem buscando junto à ANAC e ao Ministério do Turismo a regulamentação da atividade comercial, com o objetivo de garantir segurança jurídica, fiscalização adequada e ordenamento da atividade no território municipal.”
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