Dois lançamentos recentes, o do livro “Recurso Final”, do jornalista Paulo Markun, e o do documentário “Levaram o Reitor”, de Luis Nassif, reavivam a história trágica da morte do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier, o Cau, em 2017. De maneiras diversas, recolocaram no centro do debate público a espetacularização das operações policiais e o linchamento midiático levado às últimas consequências.
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A Operação Ouvidos Moucos, que levou Cancellier à prisão e motivou sua morte, apurava um suposto “desvio de R$ 80 milhões” – valor que mais tarde se mostrou descabido. As suspeitas que recaíam sobre o reitor eram de obstruir as investigações. Ele foi preso, algemado, interrogado, despido. Um dia e meio depois, Cau deixou a prisão proibido de colocar os pés na universidade, destroçado e com o destino selado para sempre.
Houve excessos na operação, hoje amplamente reconhecidos por juristas. Por justiça, é necessário falar também do nosso erro. As notícias sobre a prisão do reitor da UFSC, afinal, partiram de SC. O jornalismo catarinense era o mais próximo aos fatos, às fontes, e o que teria melhores condições de questionar as autoridades. Com raras exceções, não o fizemos.
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Algumas perguntas muito importantes terminaram aquele 14 de setembro de 2017 sem resposta. A mais inconveniente delas é se havia materialidade para que o reitor fosse preso em uma operação policial sem antes ter passado por um interrogatório formal. Julgado publicamente antes que tivesse direito a um processo de acordo com a lei.
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O jornalista Paulo Markun, que escreveu “Recurso Final”, mergulhou nas 20 mil páginas do processo da Ouvidos Moucos, ouviu dezenas de fontes e escreve de maneira desapaixonada sobre o caso. Ele lembra que, de modo geral, a imprensa reproduziu logo na largada apenas o que as autoridades trouxeram à tona. Cancellier era o nome nas manchetes dos jornais, o reitor que tentou esconder um esquema de corrupção – ainda que não houvesse solidez nas informações. Só no decorrer dos dias, com o reitor fora da prisão, e especialmente com sua morte, o caso ganhou novos contornos. Falhamos em exercer nossa função, a de servir de filtro entre o que as autoridades querem informar, e o que as pessoas precisam saber.
– Era o clima da Lava Jato, de passar o Brasil a limpo, que criou a regra de que todo mundo é suspeito até que se prove o contrário – diz Markun.
Acioli Cancellier, irmão mais velho de Cau, expõe as consequências à coluna:
– Meu irmão não morreu pelo que estava no inquérito. Ele era um jurista, veria que a acusação não se sustentava, que o que havia contra ele era obstrução à Justiça por um ato protocolar. O que o matou foi a repercussão midiática, orquestrada pela Polícia Federal. Quando meu irmão esteve nas páginas dos portais, nos jornais de repercussão nacional, estava condenado – diz Acioli Cancellier, irmão mais velho de Cau.
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A espetacularização, alçada a modus operandi, é um desvio perigoso em uma sociedade que avalia sua Justiça incompetente para punir. A destruição de reputações alimenta o discurso moralista, lava a sede por vingança, mas também carrega com ela os direitos mais elementares.
Todo indício de crime deve ser investigado e qualquer crime deve ser combatido, processado e julgado – de acordo com a lei. O caso Cancellier permanecerá como um lembrete trágico, também para o jornalismo, de que Justiça não se faz sem garantia de direitos.
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O tabu
No campo do Direito, o caso Cancellier tem sido retratado recentemente por nomes como o do ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Cesar Asfor Rocha, que publicou um artigo sobre o caso, e foi lembrado mais de uma vez nas redes sociais pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Na imprensa nacional, a memória da tragédia catarinense mereceu a escrita de Elio Gaspari e de Fernando Schüler. Mas o assunto parece ainda soar como tabu em Santa Catarina.
Chefe de gabinete da reitoria da UFSC, Aureo Moraes, que trabalhou ao lado de Cancellier, diz que a própria universidade não soube, na época, responder à altura dos fatos. Mas avalia que essa autocrítica foi feita internamente, o que não ocorreu com as demais instituições.
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– Seria importante que viessem a público reconhecer que houve uma origem viciada nesse processo.
A família de Cancellier chegou a denunciar a operação ao Ministério da Justiça, ainda no governo Temer. Nunca teve resposta.
A lição
O jornalista Paulo Markun avalia que o episódio da morte trágica de Cancellier tenha resultado em uma mudança na maneira como operações de grande repercussão são acompanhadas e divulgadas pela imprensa nacional. Ele cita como exemplo os recentes mandados de busca e apreensão contra o pré-candidato à presidência da República, Ciro Gomes (PDT), e seu irmão, o senador Cid Gomes (PDT). Diz que o fato foi noticiado de forma muito diversa da Operação Ouvidos Moucos, como consequência de duas situações: por um lado, a mudança de clima no Brasil. Por outro, o gesto extremo de Cancellier.
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