Um dos mais conhecidos pesquisadores brasileiros em Ciências Sociais, Roberto DaMatta é autor de obras que se tornaram referência na tentativa de explicar o jeito de ser do brasileiro. Ele pesquisou o sistema cultural do país discutindo categorias que são senso comum, como o jeitinho, o paternalismo e o carteiraço.

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> Reportagem: Por que é tão difícil cumprir as regras da pandemia?

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Mestre e doutor pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, onde viveu por 20 anos, o antropólogo e professor da PUC-RJ é representante de uma tradição de pesquisadores e ensaístas que interpretam o brasileiro. No mais recente livro, “Você Sabe Com Quem Está Falando?”, de 2020, trata do autoritarismo nacional e de quem se sente livre de obrigações para com os outros.

Aos 84 anos, bem-humorado e verborrágico, DaMatta relaciona o comportamento dos brasileiros na pandemia à escravidão, que deixou como legado uma desconfiança sobre  autoridade e lei. Cita a hierarquia familiar, que forma cidadãos obedientes à autoridade, mas treinados menos a servir do que a serem servidos. Conforme o antropólogo, cumprir regra, no Brasil, é sinal de inferioridade. Vale para a fila do banco, assim como para cobrir o rosto com máscara. Confira a entrevista:

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Por que as regras básicas de prevenção ao coronavírus têm adesão baixa no Brasil?

Não é só no Brasil. A gente sempre achou, por uma série de questões, que o Brasil era uma sociedade atrasada, mestiça, inferior… Isso no século XIX inteiro, eram essas as teorias da época. A gente sempre olhou para fora de uma maneira muito superficial. A pandemia, entretanto, mostra que não é só o Brasil que não cumpre regras. Senão você não explica o retorno do vírus na Alemanha, na Itália, eu estou admirado com o caso inglês, o caso americano é muito complicado… 

Com toda sinceridade, morei mais de 20 anos nos Estados Unidos, é o país que tem mais casos. Como a gente explica? Eles são cumpridores de regra, mas a pandemia lá está altíssima. Tenho a impressão de que a difusão maciça da doença, o fato de você saber que nos Estados Unidos tem mais doente do que aqui, que na Itália também tem, que Milão tá fechada, não sei o quê… “Quer saber de uma coisa? O troço é tão maluco que eu não vou tomar esses cuidados”. 

Essa não é uma explicação, é um palpite. Mas junto com esse palpite vêm as coisas que atuam no Brasil, que estão dentro da gente, e que nesses momentos aparecem: a proteção sobrenatural, a gente acredita que morre quem tem que morrer, que quando alguém morre era a hora. É o sistema em que nós somos treinados a confiar desconfiando das regras.

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O senhor afirma que, no Brasil, quem cumpre a lei sente-se inferior. Isso se aplica às máscaras?

Sem dúvida, qualquer regra. Por exemplo, o caso desse jogador (Marcinho, do Botafogo, que atropelou e matou um casal). O cara estava a 90 km/h numa rua, pô! O que ele está fazendo? Evidentemente está mostrando para todo mundo que subiu na vida. Está com um carro novo, importado, é um jogador de futebol que está ficando famoso. Isso é ruim? Claro que não. Mas o contexto pode tornar uma coisa criminosa. 

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A gente vê em todos os lugares do Brasil: o restaurante está fechado, mas se o prefeito chegar, o dono abre. A amizade, a simpatia e o amor fazem com que certas regras não sejam cumpridas. Outra coisa importante: afeto promove contágio? A sua mãe com gripe, você não vai chegar perto dela? É difícil meter na cabeça que a pessoa que mais ama você vai te passar Covid. Como pode imaginar que um chopinho com os amigos que você gosta vai redundar em uma doença mortal? 

Nós não somos treinados a obedecer regra. Tem um monte de coisas que a gente faz que vêm do sistema doméstico, que é hierarquizado e extremamente autoritário. Você não discute com o seu pai. Uma sociedade que teve escravos durante cinco séculos, que até hoje tem empregado doméstico subpago. Uma sociedade do favor, em que você está sentado e quer beber água, e quem vai trazer é sua mãe. “Por que você não pediu para mim, meu filho? Eu traria a água para você”. É assim que a gente é criado. A gente não sabe fazer cama, não sabe passar camisa… A maioria dos homens é criada para uma inutilidade em coisas práticas. É uma sociedade do abuso, muito mais abusiva do que as outras. É uma sociedade permissiva para algumas pessoas em certas situações.

Por que os brasileiros não cobram uns dos outros o cumprimento de regras de convivência?

Você cobrar de um amigo, é uma coisa. O amigo vai contar uma piada, ou vai mandar você tomar banho, ou vai cumprir. Não é bem uma cobrança. Agora, se for um estranho, a nossa reação é muito negativa. E aí surgem esses episódios, o “sabe com quem está falando”? É um conflito em potencial. Até buzinar, cara! Se você está dirigindo e alguém buzinou atrás de você, você fica ofendido. A gente tem uma intolerância com as pessoas que não conhecemos.

Por outro lado, uma das maneiras de mostrar que a outra pessoa é humana é chegar perto, é tocar. Tem gente que fala pegando no seu braço, botando a mão no ombro. É muito difícil, convenhamos, você se conter naquilo que faz inconscientemente. Como é que você inibe isso? Costumes inconscientes, como o Freud chamou. Aquilo que não precisa ser escrito. Você recebe uma visita em casa, ela bebe água, você pega aquele copo, isola, e daqui a pouco a visita vê você limpando o copo várias vezes. É uma ofensa! Um cara oferece a mão, você se recusa a apertar a mão dele. É uma ofensa! Recusar um abraço?

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Qual o papel da liderança política para gerar uma ação coletiva?

Qualquer liderança é importante. Você não pode ter uma liderança contraditória, errática. O cara (Jair Bolsonaro) tem atração pela morte, pô! Tenho um defeito enorme, eu confio nas pessoas. Mas tem pessoas que não merecem a nossa confiança. É o caso do presidente, não posso confiar nesse cara. Se você tem um líder que incentiva isso, aí fica muito perto da sabotagem. 

A vacina está sendo sabotada. Ele foi favorável a um remédio que não funciona, agora é contra a vacina, que funciona. Tem muita gente que está seguindo o líder. Cegamente. Você não viu nos Estados Unidos? É uma coisa decepcionante. Você ter uma liderança que propositadamente busca conflito, num país que tem muitos problemas e contradições para serem resolvidos, é o pior cenário possível.

No seu trabalho, o senhor relaciona escolaridade e cidadania. Em Santa Catarina, a reação às medidas preventivas parte, em grande medida, de pessoas com escolaridade. Por quê?

Quando fiz a pesquisa do “Sabe com quem está falando?” na década de 1970, eu perguntei quem segue a lei e quem não segue. Uma pessoa me deu uma resposta que eu sempre repito: “Quem segue lei é babaca”. Os caras de classe média, que somos nós, driblamos. “Não, cara, isso aí (coronavírus) a gente não vai pegar”. E aí pega, bicho! Tenho um exemplo concreto. Vivenciei horrorizado. Pessoas dizendo que os chineses inventaram isso para dominar o mundo. Dá para acreditar nisso?

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Dez meses depois, ainda é possível reverter a falta de ação coletiva contra a Covid-19?

A única maneira de reverter erros humanos é admitir que tem um problema. A doença é como um temporal, alguma coisa inesperada. Veio o inesperado de uma chuva muito forte numa cidade. O que vai fazer com que a gente veja o que é certo e errado é a narrativa, verbal ou comportamental, dos habitantes daquela cidade e das cidades do entorno. Se vão ajudar, se não vão ajudar, quem se sacrificou pelos outros… Isso é o que vai definir o tamanho da nossa compaixão.

Você está perguntando pra mim por que essa resistência a cumprir normas no Brasil. Como é que você pode ter cinco séculos de escravidão sem obrigar um grupo, com chicote, a obedecer? Pense nisso durante 10 minutos: quais são as implicações de você ter um escravo na sua casa ao invés de um empregado?

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