O ataque que matou quatro crianças em uma creche de Blumenau despertou anúncios de autoridades em Santa Catarina sobre medidas de segurança para evitar eventuais novos casos. Entre as propostas, estão policiamento nas escolas, contratação de vigilantes e maior controle dos acessos. Especialistas em educação, segurança pública e psicologia social ouvidos pelo NSC Total afirmam, no entanto, que as sugestões até aqui não são o bastante e que a resposta ao problema deve ultrapassar os muros escolares.

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Quem estuda e trabalha com o tema concorda ainda em dizer que os ataques cada vez mais recorrentes, espelhados de episódios que pareciam comuns apenas aos Estados Unidos, não serão superados com “fórmulas mágicas”. Eles exigem ações de diferentes áreas, justamente por terem múltiplas causas, que vão de treinamento contra ataques à ampla promoção da cultura de paz.

Causas complexas, soluções diversas

— É um problema que não é só de Santa Catarina ou do Brasil, é do mundo inteiro. São situações extremamente complexas e que devem ser respondidas assim, de maneira complexa e estruturada. Acho que não existe uma fórmula mágica, se não já teria sido feita — diz o promotor de Justiça João Luiz de Carvalho Botega, que acompanha o caso de Blumenau e coordena o Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude e Educação (CIJE) do Ministério Público estadual (MPSC).

O promotor afirma apoiar a criação de um grupo de trabalho intersetorial em Santa Catarina, a exemplo do grupo interministerial anunciado pelo ministro da Educação, Camilo Santana, ainda nesta quarta (5), dia do ataque em Blumenau, para avaliar medidas de segurança.

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Carvalho Botega também diz não ser exatamente contrário a detectores de metais nas portas das escolas ou a câmeras de segurança, mas pondera que isso não teria evitado o próprio ataque em Blumenau, em que o agressor sequer passou pelo portão principal, tendo pulado o muro, ou o ocorrido em São Paulo no último dia 27, em que havia câmera até na sala em que houve as mortes a tiros.

Ex-secretário de Segurança Pública de Santa Catarina, o advogado Alceu de Oliveira Pinto Junior diz que a disposição de vigilantes nas escolas, plano já anunciado pelas prefeituras de São José e Jaraguá do Sul, por exemplo, também não deve resolver todo o problema.

— Isso não é o bastante para evitar novos ataques. O vigilante tem uma função meramente de proteção patrimonial. É claro que a presença dele fardado inibe certas ocorrências. A instalação de câmeras em unidades escolares, caso não tenha alguém verificando, servirá apenas para investigação criminal depois do ataque. São instrumentos que tendem a inibir esse tipo de ataque, mas é preciso fazer mais.

Em Santa Catarina, as escolas estaduais já têm câmeras, o que a Alesc recém-votou para tornar obrigatório. A gestão Jorginho Mello (PL) diz analisar um estudo técnico para ampliar esse monitoramento, hoje com cerca de 4 mil câmeras nos pátios e nas entradas — a unidade atacada em Blumenau é, no entanto, privada, e creches públicas têm gestão municipal.

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Câmeras e vigilantes são complementares, mas não suficientes

O analista em segurança Eugênio Moretzsohn também diz que essas são medidas complementares, mas não suficientes. Ele propõe o que chama de cultura de segurança, com diagnósticos de fragilidades de cada escola — o que o governo catarinense diz pretender fazer — e a criação de núcleos de segurança escolar parecidos às comissões internas de prevenção de acidentes (Cipas) em espaços de trabalho.

— É a educação de trânsito que reduz os acidentes, e não as multas. É a educação sexual que reduz as transmissões de doenças venéreas, e não apenas a camisinha. Todas as medidas conhecidas, como cercas elétricas, alarmes e sensores, são importantes e complementares, mas não serão suficientes sem o processo educacional — diz Moretzsohn.

Especialista em segurança pública e gerente do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani afirma ter entendimento parecido, citando que condutas isoladas já fracassaram em outros países.

Ele propõe, entre outras medidas, algumas políticas relativamente baratas e mais efetivas: controle de portarias, com averiguação criteriosa de quem entra na escola; muros e grades mais altos, para evitar entrada que não seja pela portaria, como ocorreu agora em Blumenau; e treinamento dos educadores para saberem o que fazer na ocasião de um ataque, como criar barricadas e trancar crianças em salas.

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O prefeito de Blumenau, Mário Hildebrandt (Podemos), disse, após o ocorrido na cidade, que profissionais da educação municipal haviam sido treinados recentemente para lidar com um atirador. O delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, anunciou que professores no Estado também vão passar por formação assim com a Polícia Militar.

Dispensa de armas e inteligência fora das escolas

Langeani defende ainda o reforço na ronda escolar, uma vez que seria inviável manter um policial à porta de cada escola, visão com a qual concorda o ex-secretário Alceu de Oliveira. Ambos, assim como o analista Moretzsohn, também refutam a ideia de ter profissionais com armas de fogo nas escolas — a prefeitura de Blumenau anunciou, na quinta (6), que estuda ter policiais e bombeiros da reserva nas unidades, medida que teria apoio da gestão Jorginho.

— Não é um espaço seguro para uso de arma. Um profissional armado precisa ser treinado, e, se multiplicarmos por cada turno escolar, não acredito que tenhamos orçamento para ter esses profissionais todos — diz Oliveira, que é também diretor da Escola de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

— A ideia de armar professores é parte dessa loucura que o mundo de hoje está e nem deve ser considerada — endossa Moretzsohn, que é ainda ex-oficial de inteligência do Exército e coronel da reserva.

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Os especialistas também defendem serviços de inteligência fora das escolas, no rastreio a possíveis ameaças entre fóruns onlines em que os agressores planejam ataques e, depois de executarem alguma ação, são tratados como mártires por conta disso — por essa razão, a divulgação do nome e imagens dos agressores são contraindicadas.

Carvalho Botega, do MPSC, diz que a Promotoria catarinense já faz investigações assim desde o ano passado através do CyberGaeco, a exemplo da Polícia Civil, mas que ainda é preciso avançar com isso, com maior disposição das redes sociais que hoje hospedam grupos de ódio.

— Esses grupos estão indo para a superfície da internet, saindo da deep web, indo para as redes sociais. Precisamos aprimorar esse controle junto com as bigtechs, que controlam as redes sociais, porque elas conseguem monitorar, então também podem identificá-los.

Fatores simbólicos e atenção aos alunos

Ao tratarem das medidas de segurança, os especialistas ainda destacam que não é só a suposta vulnerabilidade que faz uma escola ser atacada. Um ponto de ônibus, um hospital ou um shopping, por exemplo, estariam igualmente suscetíveis, mas nem por isso são alvos: há, portanto, um fator simbólico, da formação do assassino.

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— A gente tem uma questão simbólica da escola, às vezes uma relação pregressa do agressor com a escola, alegando que eventualmente sofreu algum bullying. Tem uma questão de efeito de cópia, de autores usando o mesmo tipo de vestimenta, as mesmas armas, existe um efeito de diálogo desses casos. E tem uma intenção de chocar e chamar atenção: e poucas coisas chocam mais a sociedade do que agressões a bebês e crianças — explica Langeani, do Sou da Paz.

Autora de diversos livros sobre violência nas escolas, a doutora em educação Miriam Abramovay reforça essa avaliação e chama a atenção para outras características dos agressores: são jovens adultos isolados, todos homens, brancos, que nutrem ódio pela comunidade escolar, único espaço de socialização que frequentaram ao longo da vida, e por mulheres, tendo visões deturpadas sobre masculinidade. Eles ainda vivem em função de redes sociais, onde se alimentam de grupos de ódio e ataques a minorias.

É preciso, portanto, segundo ela, dar atenção às demandas de cada escola, de modo a inibir a formação de potenciais agressores e reconhecer jovens com mudanças de comportamento, cooptados por esses grupos, além de coibir discursos de ódio dentro e fora das escolas.

— É preciso um diagnóstico sobre o que acontece nas escolas, o que hoje não existe, e, ao mesmo tempo, propor um programa de participação escolar, com professores, funcionários, pais, alunos, para fazer com que essas pessoas criem uma relação profunda com as escolas, que tenham grêmios escolares, com a possibilidade de intervirem nas escolas. É preciso que os alunos sejam pesquisadores da própria realidade e que possam fazer um plano de ação, com ações positivas relacionadas à escola — diz Abramovay, que já coordenou estudos sobre o tema na Unesco.

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A doutora em psicologia social Catarina Gewehr, professora da Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb), diz que a atenção aos estudantes deve partir também da família.

— Os adultos responsáveis pelo cuidado de uma criança e de um adolescente precisam, sim, acessar celular. Até você ter capacidade de discernimento, privacidade é algo questionável, não há direito a ela quando o conteúdo que essa criança e adolescente está consumindo pode comprometer sua vida e de sua comunidade — afirma a psicóloga.

Combate ao discurso de ódio

Ao tratar de discursos de ódio, a pesquisadora Miriam Abramovay faz menção crítica à postura do governo anterior, de Jair Bolsonaro (PL), que, segundo ela, deixou como herança ânimos inflamados para esse tipo de ataque, ao inibir o aprendizado sobre temas como política e sexualidade nas escolas, que abririam margem para uma convivência saudável e respeitosa, e promover o que chamou de ode às armas.

Langeani diz concordar que discursos violentos do campo político, como os que diz ver serem propagados pela extrema-direita, contribuem para normalizar ataques assim. É o que explicaria, segundo ele, o fato de Santa Catarina já ter dois episódios em menos de dois anos, lembrando do caso de Saudades, embora tenha outros indicadores de criminalidade baixos se comparados aos de outros estados.

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— Esse tipo de ataque acaba escapando da criminalidade comum. Isso é parte do processo de radicalização de extrema-direita. Se a gente olhar a quantidade de denúncias, de intolerâncias, de casos de nazismo, Santa Catarina, infelizmente, se destaca muito nesse tipo de extremismo — diz o especialista.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, também afirmou que os ataques em escolas integram um cenário de proliferação de discursos de ódio e anunciou que a Polícia Federal vai investigar a atuação interestadual de grupos neonazistas por ocasião da tragédia em Blumenau, uma vez que essas células gestariam casos assim.

Promoção da cultura de paz

O promotor Carvalho Botega, do Ministério Público de Santa Catarina, também alerta sobre a normalização de discursos de ódio, mas sem atribuir isso a qualquer campo político, e prega a necessidade de promover uma cultura de paz.

— Temos que olhar para esse problema de radicalização da juventude, para o aumento da intolerância no nosso país. Isso passa por uma educação para a tolerância, para a democracia, em pensar em uma educação antirracista, anti-homofóbica, contra o ódio às mulheres, na construção de uma cultura de paz — diz, citando o projeto piloto Escola Restaurativa, que tenta pacificar unidades com histórico conflituoso a partir de uma abordagem multidisciplinar, o que inclui atuação de assistentes sociais e psicólogos.

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A Secretaria Estadual de Educação (SED) afirma que já trabalha com diferentes competências e habilidades nas escolas, justamente para ampliar o respeito e a empatia na sociedade.

“As coordenadorias regionais também contam com profissionais como psicólogos e assistentes sociais, que compõem o Núcleo de Prevenção às Violências Escolares (NEPRE), para dar suporte às escolas e estudantes”, escreveu, em nota divulgada após o ataque na creche Cantinho Bom Pastor.

A psicóloga Catarina Gewehr endossa a defesa da cultura de paz e a necessidade de coibir, para além dos discursos de ódio, o que chama de espetacularização da violência, que aparece, segundo ela, também em jogos eletrônicos que se resumem a agressões e ajudam a proporcionar um padrão de comportamento desfuncional para crianças.

— Precisamos de uma cultura em que a vida seja um valor fundamental, em que todas as vidas importam, e não de uma cultura armamentista, restritiva, conservadora, fundada na aposta de uma sociedade armada até os dentes, em que se defende mais quem tem mais agressividade — diz a professora da Furb.

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— Com vigilantes e muros altos, você consolida as paredes da bolha. Mas o bom seria que todas as pessoas da comunidade se sentissem responsáveis por todas as crianças. Precisamos de praças, de eventos que proporcionem uma percepção de paz, de escolas com excelentes bibliotecas, de conexão com expressões culturais locais, para que a criança possa produzir uma interpretação qualificada da própria realidade e da existência. Temos que trabalhar coletivamente, não existe saída individual.

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