Carlos Moisés (PSL) disse ao Jornal do Almoço de quarta-feira (23) que não pode operar um milagre e que “talvez dependa de Deus” salvar catarinenses da morte por Covid-19. Nada contra o divino. Manifestar fé, num momento de dificuldade, certamente não atrapalha. O problema é delegar aos céus a sorte de milhões depois de ignorar os mandamentos fundamentais da ciência contra o vírus.
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Entre março, quando se estarrecia com o negacionismo de Jair Bolsonaro, e este dezembro, em que expressa sem pudor um liberalismo tosco que aceita a hipótese de um indivíduo fazer mal à saúde do próximo em nome de liberdades comezinhas, Moisés teve tempo para compreender e explicar ao povo as providências necessárias para evitar mortes e poupar a economia de solavancos desnecessários.
Escrevi, em meados de julho, que Santa Catarina pagava em vidas e empregos o preço de acreditar em atalhos contra o coronavírus. Àquela época, já sobravam exemplos de sucesso e conhecimento científico para tomar as decisões corretas. O “milagre” de Moisés existe há meses. O vizinho Uruguai, com 14 mil casos e 128 mortes para 3,5 milhões de habitantes, demonstra que um território sem os recursos financeiros e científicos do primeiro mundo tem condições de proteger seus cidadãos minimamente. Basta seguir os mandamentos que Santa Catarina ignorou.
1 – Testar, testar e testar.
Assim que reconheceu a situação de pandemia, a Organização Mundial de Saúde (OMS) orientou autoridades a investir pesado em testagem. O motivo é óbvio: identificar rápido os novos casos para isolá-los antes que passem o vírus adiante. Santa Catarina demorou a ampliar a testagem, tarefa que coube principalmente aos municípios. Além disso, nos raros momentos de queda nas taxas de contágio, o Estado diminuiu também o número de testes. Isso atrasou a identificação de novos surtos, encurtando as tréguas do vírus.
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2 – Investir na ciência local.
Em resposta ao primeiro mandamento, gestores de saúde brasileiros costumam justificar que faltavam testes no mercado no início da pandemia. No Uruguai, o desenvolvimento de um teste nacional recebeu aportes e atenção do governo. Resultado: o pequeno país não dependeu dos laboratórios estrangeiros para testar logo a população. Santa Catarina gerenciou a crise distante das universidades e ignorou alertas e apelos de cientistas por uma mudança de rumo.
3 – Rastrear contatos dos doentes.
Dada a enorme quantidade de casos ativos, Santa Catarina e o Brasil nunca conseguiram implantar políticas efetivas de investigação do contágio. Se isso fosse feito, familiares, colegas de trabalho e outras pessoas que estiveram com alguém que testou positivo teriam de ser isolados e testados antes de retomarem a vida normal. Seria possível interromper apenas as atividades dos estabelecimentos com surtos, e não toda a economia.
> “Em situação gravíssima, Santa Catarina aposta na liberdade de circulação do vírus”.
4 – Distanciar pessoas e esvaziar locais fechados.
Enquanto no Brasil só existem as opções “fechar” ou “liberar geral”, países com bons resultados na contenção da pandemia restringiram a circulação de pessoas de maneira racional. Analisaram os resultados a cada restrição ou afrouxamento e guiaram as decisões pela quantidade de casos que seria possível evitar com cada medida.
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O debate infantilizado, inclusive em Santa Catarina, manteve escolas fechadas por tempo recorde enquanto igrejas, bares e festas funcionaram. Escritórios mantiveram trabalhadores em espaços com ar-condicionado enquanto praias e parques estiveram a maior parte do ano proibidos.
5 – Comunicar com assertividade.
Numa crise monumental, espera-se de um líder que diga, em palavras objetivas, qual direção deve tomar a coletividade. É dele a responsabilidade de convencer a população a seguir as medidas oficiais. As contradições entre o Moisés do primeiro semestre (“Não estamos numa normalidade. A nossa crise nem chegou ainda”) e o do segundo (“Nós temos os regramentos, temos as atividades, e as pessoas precisam cumprir as regras”) revelam um governante que desistiu de liderar. É cada um por si.
6 – Liderar pelo exemplo.
Moisés passou semanas orientando as pessoas a ficar em casa. Ato contínuo, apareceu em uma festa junina em Gaspar, sem máscara. Um mês depois, em julho, contraiu o vírus.
Gastou o ano defendendo-se de acusações sobre irregularidades na compra de respiradores e na contratação de hospitais de campanha. Viu o próprio governo ruir por causa das denúncias de corrupção. Voltou ao poder após um processo de impeachment do qual foi salvo não pela convicção dos deputados, mas por falta de acordo político para substituí-lo.
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7 – Fiscalizar as medidas preventivas.
O governo de Santa Catarina decretou um “toque de recolher” para inglês ver. Logo em seguida, apressou-se a dizer que não era um toque de recolher. Desenvolveu um mapa de risco cujos critérios mudam todo mês — e o viola sem ouvir os técnicos da saúde.
Prometeu fiscalizar estabelecimentos que promovem aglomerações, mas luta para legalizar aquilo que não quer importunar, como eventos e a lotação de hotéis.
Não é de se surpreender que os policiais militares tenham receio de adotar rigor na fiscalização em espaços públicos como praias. Estariam sozinhos.
8 – Engajar a comunidade no combate ao vírus.
Sem conseguir dissipar a nuvem de desinformação vinda do Planalto, governador e prefeitos catarinenses assumiram a posição covarde de culpar a população pelos resultados ruins no combate à pandemia. Preferiram diluir responsabilidades a exercer liderança política.
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Comunicação confusa, sinais trocados e maus exemplos deterioraram a confiança da população nos gestores da crise.
9 – Aproveitar as vantagens da geografia.
Santa Catarina tem poucas conexões por via aérea internacional e está longe dos grandes centros do país. A capital fica numa ilha. Os catarinenses vivem em cidades pequenas e médias com índices de desenvolvimento superiores aos da média nacional. A maior parte da população tem condições mínimas de moradia e pode isolar-se em casa, quando necessário.
São aspectos que teriam beneficiado os catarinenses caso o governo tivesse um plano para suprimir o vírus e depois tentar conter a importação de casos, como fizeram países ainda mais privilegiados pelo isolamento geográfico, como Uruguai e Nova Zelândia.
10 – Não transformar UTIs em boia de salvação
Moisés repete discurso comum entre os prefeitos de Santa Catarina ao dizer que há leitos de UTI suficientes para atender a todos. Dá a entender que, em havendo atendimento médico, o problema da Covid-19 estará resolvido.
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A cada 10 pacientes que precisam de terapia intensiva, cerca de quatro morrem mesmo recebendo o tratamento disponível. É por isso que todos os dias dezenas de leitos de UTI vagam nos hospitais catarinenses.
Em resumo, o governo de Santa Catarina deixou de promover medidas que exigiriam maior capacidade de gestão e liderança do que recursos financeiros. Não testou o suficiente, não rastreou contatos, não controlou surtos, não se comunicou direito com a população, deu péssimos exemplos, não fiscalizou as próprias medidas restritivas e usou narrativas escapistas para culpar os governados por tudo que não fez.
É por isso que agora aponta para o céu à espera de soluções. Acredite quem quiser.
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